Ela pegou aquele endereço com uma amiga e o escreveu bem rápido em um daqueles guardanapos promocionais. E lá chegando, fechou bem os olhos para entender o que tinha anotado, concluindo, por fim, que estava em frente ao portão certo.
Lá dentro as roseiras se misturavam às samambaias e tufos de grama japonesa se alastravam pelo chão. Era primavera e as árvores estavam floridas.
Sentiu o cheiro úmido da natureza por toda a parte. Notou uma pequena pitangueira na entrada com suas folhas miúdas dando boas vindas a todos que se aproximavam do portão de ferro para buscar a campainha.
A casa parecia antiga, provavelmente do início do século XX. E essa era uma bela época na qual os visitantes eram brindados com um singelo jardim que parecia dizer “como vai” e “seja bem vindo”.
Ela tocou a campainha duas vezes. Não queria parecer insistente. Se ninguém atendesse iria embora. Desejava muito presentear a avó com uma pintura e diziam que os óleos daquele artista eram sublimes. Tinha visto um na casa da amiga e ficara impressionada com a qualidade e delicadeza dos traços.
Alguém agitou a vegetação e rapidamente o portão se abriu. Um homem alto, com expressivos olhos verdes e um sorriso discreto surgiu apoiado nas volutas de metal.
Ela ficou espantada ao vê-lo recebê-la de forma tão casual, sem recear quem tocava e notou que ele calçava sandálias franciscanas surradas, uma calça de linho amarrotada e carregava a camisa não no corpo, mas sobre os ombros.
– Olá, bom dia. Se estiver ocupado posso voltar em outra hora.
– Não se preocupe, terminei um quadro no atelier e estava indo me trocar. Entre, por favor. Se não se incomodar em esperar, vá por esse caminho até aquela porta, falou apontando com o dedo, e espere um instante enquanto busco alguma coisa para vestir.
Ela obedeceu, tendo a imensa sensação de que sua presença ali era indevida, que o quadro era um capricho e que o melhor a fazer era dizer adeus o quanto antes.
Realmente ele não demorou a voltar e surpreendentemente escolheu uma regata branca para vestir, ignorando que tudo ali parecia conter um restinho de tinta e que o branco não resistiria por muito tempo.
Ela lhe falou do quadro que pretendia dar a avó. Ele lhe pediu uma foto. Ela tirou uma do bolso do vestido. Tinha encontrado nas coisas da mãe. Era uma daquelas coloridas à mão.
Ele pegou e sorriu um pouco passando os olhos pela foto ao mesmo tempo em que admirava o rosto dela.
– Você se parece com sua avó.
– Alguns amigos que jogam tranca com ela às quartas-feiras e que provavelmente a conhecem há décadas me disseram o mesmo.
– Para quando você quer a pintura?
– Ela fará oitenta anos em um pouco mais de um mês.
– Sua amiga me ligou dizendo que viria, mas disse que seria há duas horas.
– Me desculpe, prorroguei minha vinda achando que o presente fosse um capricho meu.
– O presente é um capricho seu?
– Em partes sim… Falou olhando para os lados buscando algum ponto onde pudesse pousar, desesperadamente, as vistas. Notou o quadro recém acabado atrás de si, sorriu, engoliu a pouca saliva que lhe restava na boca. Acabei de me lembrar que nem mesmo disse meu nome.
-Sua amiga me contou.
-Eu sempre faço isso, vira e mexe ignoro as regras básicas das boas maneiras. À propósito gostei do quadro. Uma encomenda?
– Gostaria que fosse um capricho, falou rindo, mas sim é uma encomenda. Quanto às boas maneiras, gosto de pessoas sinceras que vão direto ao ponto.
– Francisco, acho que já fiquei tempo demais, preciso ir – falou deixando as letras escorregarem por sua boca rapidamente.
– Aceita um copo d’água antes de sair correndo por aquela porta?
– Não costumo beber muita água, mas se não se importar, eu aceito.
– Vou buscar lá dentro, prometo não demorar.
Quando ele saiu, ela sentiu um silêncio retumbante invadir todo recinto, e naquele instante esse silêncio não lhe pareceu assustador, pelo contrário, calava toda a ansiedade que gritava: “vá embora”.
Achou um espelho no canto. Nele bordas descascadas pelo tempo e seu reflexo. Parecia uma menina terrivelmente assustada. Como se lhe roubassem o primeiro beijo. Passou os dedos sobre a boca e ela estava terrivelmente seca.
A água chegou e Francisco a fitava com o copo nas mãos.
– Não percebi que estava ai.
– Não a quis interromper. Por onde pairavam teus pensamentos, moça?
– Estancaram em mim, em alguma parte que não consigo por hora compreender.
– São sinceras as suas palavras, falou encostando o copo nos dedos dela agora gelados pelo nervosismo. Eu não disse seu nome, tão pouco você, mas fiquei surpreso quando a Carmem me ligou.
– Ficou surpreso? – disse ao beber o copo d’água em rápidos goles.
-Sim, ela pediu que eu o anotasse para que não o esquecesse. Disse: escreva à caneta, pois todos o esquecem depois de alguns minutos. E eu pedi que me dissesse e não o anotei.
– Não escreveu nada?
-Não, nem uma só letra.
– Por isso não o disse até agora. Eu demorei duas horas, não tem a mínima ideia de como me chamo.
– Não o disse, mas não teria dificuldade em dizê-lo agora ou em algumas horas. É uma palavra mágica. Como um “abracadabra”. Muitos vão esquecê-lo anotando ou não. Alguns até mesmo o anotarão errado, acrescentando ou tirando letras e por mais que você repita não lhes caberá na boca.
– Uma palavra mágica para quê?
– Para um mundo que até mesmo você desconhece. Como se quando nascesse lhe confiassem uma chave enlaçada em uma fita. Mas a chave, a fita e até mesmo a fechadura para ela, todas as três, estão juntas em uma única palavra. Um segredo do universo.
– Francisco, como soube?
– Um artista costuma enxergar o que os outros não vêem.
– Diga-me então – falou sem muita convicção, colocando uma mecha do cabelo atrás da orelha. Como me chamo?
– Se eu o fizer se abrirá um mundo novo…
– Apesar daquilo que conheço como sendo o mais sensato dizer-me: “corre”, parte de mim dita: fica e repousa na verdade.
E assim ele se aproximou de seu ouvido e num sussuro ditou-lhe vagarosamente o nome e um novo mundo, diferente de tudo aquilo que ela um dia sonhara, se abriu para ela.
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