O carro parou de funcionar em um dia muito quente em um lugar cujo nome eu não sabia. O GPS tinha morrido há algumas centenas de metros, contudo eu insisti em continuar para chegar ainda de dia ao parque de cavernas de Peruaçu no extremo norte de Minas.
Até então eu nada sabia do sertão mineiro, de sua aridez e paisagens por vezes desoladoras. Ninguém me alertou para o fim das estradas pavimentadas que se desdobraram rapidamente em caminhos repletos não de lama, mas de areia que quase me fizeram encalhar por inúmeras vezes.
E por fim meu carro parou, rendido pelo calor e pela minha completa falta de habilidade em saber quando parar. Olhei para minha frente e nada vi além de uma cerca que se estendia por quilômetros sem nada guardar. Certamente um dia acolheu o gado, contudo com o calor massacrante que tomava aquelas paragens, seria impossível fazer viver algo além de cobras, escorpiões e lagartos.
Se eu tivesse um pouco de água em mim talvez chorasse, contudo não me sobrou quase nada. O pouco líquido do meu corpo jorrava em um suor manso que descia de minha testa. E eu na minha incredulidade passei os dedos na testa para ver se era suor mesmo, pois como alguém da cidade grande, acostumada ao conforto de áreas refrigeradas, eu não me lembrava da última vez que tinha suado.
Peguei minha bolsa e larguei o carro para trás. Andei metros voltando de onde viera, contudo não me lembrava de ter visto qualquer sinal de civilização já há muito tempo.
Dando passadas apertadas me perguntei por qual razão não havia comprado uma garrafa de água na minha última e distante parada. Também não sabia ao certo quanto tempo eu seria capaz de aguentar embaixo daquele sol antes de desabar. Eu nunca tinha testado meus limites assim, então não tinha a mínima ideia se eu cairia em dez ou mil passos, contudo só me restava continuar.
Olhei para o meu lado e me vi sorrindo. Eu estava delirando. Olhei novamente e eu me ouvi dizendo que às vezes as coisas tinham que ser assim. Certamente eu estava enlouquecendo com o calor. Minha respiração tornou-se ofegante e quase ensurdecedora. Ouvi o trote de um ou mais cavalos, mas achei que era a outra de mim tentando me salvar de algum pensamento ruim. Sim, pensamentos ruins estavam sobrevoando minha cabeça como carcarás sedentos por comida. Tornei a ouvir o trote, dessa vez mais alto.
Olhei para trás e vi dois homens montados em cavalos baios. Pareciam índios de alguma tribo distante. Eles estavam trotando em minha direção, contudo antes de chegarem até mim diminuíram o ritmo e parearam comigo na estrada, me observando como se eu fosse algum ser de outro planeta.
Um deles, o mais novo, com os cabelos lisos e negros batendo no meio das costas me perguntou se eu estava perdida. Eu respondi que sim. Ele me questionou sobre o que tinha acontecido. Eu respondi apontando para o carro quebrado, pelo qual eles certamente tinham passado.
– Que lugar é esse? – perguntei.
Ao me ouvir fazer essa pergunta o homem mais velho deu uma risada longa, como se eu tivesse lhe contado alguma piada. E eu não pude deixar de reparar que os cabelos dele um dia foram tão pretos quanto os do outro. Daquele outro que não ria de mim. Que estava em silêncio a me olhar demorado, enxergando algo além de mim, algo que naquele instante não pude compreender. Então após uma longa pausa, ele resolveu responder à minha pergunta.
– Você está bem ao sul de Montalvania. Para onde ia?
– Para o parque de Peruaçu. – respondi.
– O caminho não é esse.
– Tem certeza? – perguntei passando a mão pelos meus cabelos aferventados pelo sol.
– Tenho sim, essa estrada não dá em lugar algum. Se quiser pode vir conosco. Amanhã providenciaremos o conserto do seu carro e você continua seu caminho.
– Tem certeza? – perguntei.
– Eu tenho, contudo, você tem certeza? – ele me perguntou dando um leve sorriso que denunciou dentes alvos e perfeitos como poucos que eu vira antes. Sorri desconcertada, pois não tinha certeza de mais nada.
– Onde vou passar a noite? Não vi nada por aqui.
– Na nossa aldeia. Meu nome é Rudá, disse ele. O outro então se apresentou como Moacir, tirando um chapéu surrado da cabeça. Nós somos Acroás. E você quem é? – perguntou com uma sincera curiosidade.
– Vim a trabalho, ia encontrar um paleontólogo no parque. Me chamo Ellora.
Rudá desceu do cavalo e se aproximou de mim. Fez com um gesto o sinal para que eu subisse no cavalo dele. Concluí que cavalgar era para aquele homem algo bem natural, contudo eu não subia em um cavalo desde os meus treze anos e com quase trinta eu me lembrava vagamente dos dias de cavalgada junto de minha avó nas fazendas do Vale do Paraíba.
Apoiei-me no estribo e subi de uma só vez e ele pedindo que eu tirasse o pé de lá, se apoiou de forma a caber no cavalo, sentado sobre o pelo do animal, atrás da sela que me envolvia.
Um vento manso tocou então os cabelos do índio e levou pra mim o seu cheiro macio de madeira nova com um toque de limão-cravo. Ele tinha um semblante sereno, carregado de uma beleza selvagem de alguém que vivia livre e andava pela terra sem se curvar. Os olhos não eram castanhos como os de Moacir, tinham um toque esverdeado, possivelmente fruto de alguma miscigenação a qual a tribo dele certamente não escapara. Sua pele era dourada feito jambo e os braços eram envolvidos por tatuagens em finas linhas que indicavam que tinham sido feitas com alguma técnica específica.
Quando Rudá adentrou a aldeia, um silêncio mórbido se fez presente e eu não pude deixar de notar o olhar de todos, mulheres, idosos e crianças que se juntaram em torno do cavalo onde eu estava para me avaliar.
Moacir balançou a cabeça dizendo que era a vontade do outro e não a dele que eu lá estivesse, contudo como o mais novo era quem parecia dar as cartas naquele lugar, acredito que ele não tenha tido opção.
– Ele é o pajé e agora também o cacique, a vontade dele tem que ser respeitada. Yayá entende a voz dele – disse Moacir apontando para o outro. Como índios somos iguais, contudo sabemos exaltar a beleza que existe na diversidade. É ela que enriquece nossas vidas e a moça aqui é diferente, nem mais, nem menos. Hoje à noite entoaremos um cântico à querida Yayá, força viva da natureza, que virá em forma de onça lamentar nossa decisão com um triste assobio ou enaltecê-la com um lindo canto, então poderemos compreender ou lamentar a decisão de Rudá ao trazer até aqui uma mulher da cidade, que nada sabe de nós, mas que já entendeu por certo que nunca negamos ajuda a quem dela precisa.
Tendo Moacir dito essas palavras todos se afastaram, dando espaço para o jovem índio descer e me tirar de cima do cavalo tão rápido quanto pôde, de tal forma que eu mal consegui me equilibrar, segurando com força no braço dele para não cair no chão.
No caminho para a palhoça Rudá pegou minha mão, me puxando sem nada dizer e eu, arfando como nunca, só consegui pedir por água. Ele parou, olhou para mim e balançou a cabeça positivamente indicando que já sabia o que era óbvio.
Na palhoça ele se abaixou, puxou uma moringa de argila e serviu um pouco de água para mim. Ao terminar de beber a água não pude deixar de pensar que tudo parecia excessivamente seco naquela região, contudo na aldeia não parecia haver falta de água. E como se tivesse lido meus pensamentos ele me disse “dois poços artesianos”.
– São deles que vem a água daqui?
-Sim. Sem eles não daria para viver em um local tão seco. Também temos uma nascente sazonal.
-Você é pajé e cacique? Como pode ser os dois?
– Meu pai era o cacique, era dele a liderança e a força para manter a tribo unida e eu era o pajé, cuidava de falar com o espírito da natureza, de entender a linguagem das coisas desse e do outro mundo e de curar as doenças da alma quando brotavam na carne. Contudo com a morte dele e por seu desejo agora sou os dois.
– Posso te trazer problemas?
-Você tem outra opção?
-Acho que agora não. Mas se quiser posso ficar aqui dentro até amanhã.
– Não acho que vá ser preciso. Hoje à noite conversaremos com a Yayá, a onça-cabocla e será ela a nos dizer algo sobre você.
-Que onça é essa?
– O espírito da natureza com a alma de uma índia que um dia saiu para caçar para a mãe e retornou como onça. A mãe correu com medo dela e ela passou a caçar o gado dos fazendeiros para matar a fome. Desde então ela mora nas grutas. Quase sempre fala conosco nos aconselhando sobre tudo que buscamos saber, como um oráculo. Nunca fazemos algo sem consultá-la antes. Se você tivesse uma Yayá em seu mundo, não teria saído de casa se o seu intuito fosse chegar ao parque.
– Você tem razão, acho que fui impulsiva ao vir dirigindo como vim. Rudá, no caminho que nos trouxe para cá notei que tudo está seco como se não tivesse quase vida por ali…
-No lugar onde deixou o seu carro e no caminho para cá pouca coisa sobrevive. Foram lugares roubados da natureza e como tal acabaram sofrendo com os mandos dela. Você pode imaginar que no passado aquele mar de areia era como um remanso verde, cheio de campos e árvores? Foi assim até os fazendeiros chegarem.
-No caminho para cá passamos, dentre outras coisas, por uma grande piscina vazia, cheia de areia. Quem por Deus pensou em fazer uma piscina em um lugar no qual não existe água o bastante?
– Uma loucura não? O homem é ambicioso ao imaginar. Sonha os mais delirantes sonhos e às vezes acha que se basta, contudo não é assim. Aqui Yayá nos supre com a água que precisamos, mas no povoado ela não está. Lá ficaram só os esqueletos de aspirações que não foram alcançadas. São carcaças de anseios que nunca se concretizaram. Não pela vontade do homem, que fez de tudo para que florescessem, mas por vontade da natureza que nunca os desejou.
– Senti um vazio ao passar por lá. Como se ninguém mais quisesse aquilo.
– E você tem razão, ninguém mais quer.
– Vocês tem algum telefone por aqui?
– Não, não usamos telefones e os assim como o seu, falou apontando para meu celular, não funcionam aqui.
– Eu percebi.
– Sentirão sua falta Ellora?
– Gosto de pensar que sim.
– Quem sentirá sua falta e por qual razão?
– Você faz perguntas difíceis – disse a ele recebendo como resposta um sorriso espontâneo. – Queria poder trocar de roupas, essas estão muito sujas.
– Eu percebi – falou me olhando de uma forma sincera e completou me dizendo que pediria para uma senhora chamada Nina me levar onde eu pudesse jogar alguma água no corpo e trocar de roupa. E tendo dito isso, passou o polegar pelo meu braço direito, do ombro ao pulso, fazendo com que meu braço se arrepiasse todo com o toque seu.
Não demorou muito e uma senhora com um cabelo preso em uma longa trança apareceu na porta da palhoça com um pedaço de pano como linho e um vestido de algodão branco.
O meu sapato ela pediu que eu deixasse lá dentro. Disse que eu deveria andar descalça pelas terras que eram sagradas e eu fiz exatamente isso.
Puxei os cadarços dos meus tênis e os escondi perto da rede, lugar no qual eu certamente dormiria mais tarde.
Ela não me pareceu muito simpática, dizendo-me ríspida com o dedo que eu a acompanhasse. Depois me levou até um pequeno amontoado de terra e mandou que eu tirasse a roupa e que enchesse as mãos com a água que atravessava em um veio aquele canto.
Notei que a anciã pedira aos homens que não fossem até ali, haja visto que apenas mulheres passavam por mim revirando seus pescoços e crianças se escondiam e riam da minha falta de habilidade em tomar um banho escorado apenas por minhas mãos.
Depois de eu me lavar ela jogou sobre mim um pano de linho e me deu o vestido branco.
Voltei para a palhoça correndo, olhando para meus pés repletos de terra e a vontade em mim era de me esconder até a hora de ir embora.
Olhei para a rede e ela pareceu-me tentadora. Percebi que meu corpo precisava não só de água, mas de descanso também. E eu ao apoiar meu corpo sobre a rede adormeci como uma criança.
Acordei em um sonho louco. Nele Rudá me apontava o lugar onde eu tinha deixado o carro. Me dizia para olhar bem para as minhas escolhas. Que muitas vezes escolhemos caminhos difíceis, arriscamos nossa vida e nossa alma em vão. Que quase sempre nos enganamos ao acreditar que haverá quem nos respalde. Pensei no que ele havia me dito sobre o caminho, sobre ele não dar em lugar algum. Eu quase morrera para chegar ali, quase morrera por um caminho em vão. No sonho olhei para Rudá e do peito dele vi uma luz tênue emanar por todos os lados e quando me virei para o lado, não era eu que dizia das razões das coisas, mas uma onça mulher. Ela vinha até mim e me tocava a pele com seu fucinho gelado e me olhava com seus olhos ocres me fazendo lembrar de quem eu era.
Acordei com um cântico ao fundo. Era a tribo que se preparava para o ritual. O sol já tinha partido e a lua se colocava majestosa no céu, iluminando o rosto dos indiozinhos que corriam para lá e para cá a brincar com seus chocalhos.
(continua)
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(Texto de Ficção – Imagem Meramente Ilustrativa)
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