“Texto lírico que trata da retomada da consciência do eu. Quando o corpo diz de um tempo e a mente de outro”.
Olhou-se em frente do espelho. Ajeitou o colar. Colocou os anéis. Vestiu pulseiras e colares, arrematou o brinco. Deu um sorriso matreiro para ela mesma. Do lado de lá uma menina mulher com seus dezenove anos. Uma menina mulher com uma linda franja escorrida que beijava os olhos azuis. Do lado de cá não conseguia ainda mensurar muito bem quem era.
Passou um batom vermelho na boca, comprimiu os lábios com o frescor do desejo.
Perfumou a alma com uma fragrância adocicada, com cheiro de manhã de sábado ao alvorecer.
Pegou a bolsa, rodopiou em torno de si mesma buscando as chaves da casa. Sentiu-se livre.
Foi para o ponto. Esperou ônibus que chegavam e partiam lotados. Um deles quase parou, mas resolveu que deveria seguir quando notou que ela tinha só um bilhete promocional.
Ela entristeceu. Olhou para os pés, para as sandálias abertas que deixavam seus lindos dedos à mostra. Pensou no tempo que levou para terminar de fazer as unhas de cada um deles.
Um ônibus parou. Ela subiu. Cederam-lhe um lugar, sem muita gentileza. Parece que algum tipo de obrigação dizia que o fizessem.
Pensou no baile. Pensou em quem iria conhecer. Ia para a zona sul da capital paulista. Em um antigo bingo. Hoje uma casa dançante.
Logo na entrada viu bebidas e coquetéis de graça. Notou muita gente feliz empoleirada ao redor da larga mesa recheada de copinhos coloridos. Resolveu beber uma batida. Era de maracujá, feita de pinga doce feito mel. Resolveu beber a segunda. Lembrou que o marido nunca a deixou beber. Lembrou dele lhe puxando os copos das mãos. Lembrou dele morrendo de infarto. Lembrou que ele lhe tirou os livros, que lhe disse que estudar era uma bobagem. Então ele ofertou-lhe louças, roupas e chãos para esfregar. Assim, as unhas de suas mãos nunca mais foram pintadas. O cabelo se conformou preso e o sorriso morreu.
E para se acostumar com o exílio, exílio sem grades, ela cantava para si, bem baixinho, músicas queridas. Assistia a filmes e novelas como se visse neles a própria vida, a vida sonhada em outrora e para sair da rotina ganhava surras do marido. Apanhava por não ser o que não sabia que podia ser. Apanhava dele e da vida. E assim, sorrateiramente, o poder de decidir lhe foi roubado.
Anos mansos vieram e beijaram seus pés sem nunca afogar-lhe a razão. Sem nunca levá-la arrastada para algum tipo de desejo ou excitação.
A música do local cerrou-lhe então as lembranças e ela retornou, deixando o exílio para dançar. Ela deixou então a cintura enlaçar-se por dois ou mais. Rodopiou. Sentiu-se plena. Sentiu-se mulher.
Aceitou a oferta de um que não sabia pronunciar bem o nome. Era mais novo que ela. Tinha as maças do rosto suaves e macias e vestia uma camiseta preta.
Foi para a rua, deixou-se tomar em um canto qualquer. Assim rápido, sem muitos pudores. Por baixo da saia rodada. Sentiu o desejo dele por si. Sentiu-se novamente lembrada.
Pensava que tinha não dezenove, mas quinze anos.
Voltou para casa exultante. O perfume adocicado cedeu lugar ao cheiro doce do seu suor.
Foi para o banho. Deixou a água bater no seu corpo e lembrou-se que tinha nele ranhuras e fissuras do tempo. Tinha nas curvas cicatrizes de lutas passadas, tinha nas dobras marcas de cirurgias. Lembrou-se da vida e da idade que tinha antes de se casar. Pensou no tempo em que podia decidir por si.
Não sabia mensurar bem se decidia certo agora. Se a casualidade do sexo era apropriada. Mas era assim que vivia a sua adolescência postergada por tantos anos. Retomou com a morte do marido a vida de antes. Era uma menina mulher, com a pele flácida. Era uma menina mulher que brincava com o fio de vida que lhe restava.
O mundo a condenava. O mundo condenava o sexo da terceira idade como profano. Ela tinha seus setenta no corpo, mas na alma tinha apenas dezenove. Ela se via no espelho como uma menina. Tinha encontrado a menina que há tanto tinha sufocado e agora queria dar-lhe algum prazer. Se errava, era tentando fazer o certo. Se errava, ao lhe dar o sexo casual, era por ter deixado morrer a consciência de si por tanto tempo. Era por ter se curvado aos mandos do mundo e do marido, suprimindo todas as vontades que agora voltavam aguçadas.
No outro dia acordaria cedo. Iria para a padaria logo no raiar do dia, antes que as portas se abrissem. Para encontrar outras meninas assim como ela, que carregavam no corpo o peso dos anos de uma longa vida, mas que viviam de novo a jovem que um dia foram.
E quem haveria de julgá-las, quem haveria de dizer que deviam saber o que nunca lhes foi ensinado? Se no lugar da indiferença, o mundo lhes desse respeito e amor, talvez fosse diferente. Mas o mundo, sedento e insaciável, sugou-lhes a vida e agora bebia, de canudinho, o restinho de ingenuidade que ainda lhes cabia no coração.
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