Uma mulher no deserto
Existia uma mulher caída no meio do deserto. Estava quase morta. E a caravana que passava tentou ignorar a mulher e sua dor. Mas aquele que era o dono de tudo pediu que parassem. E a parteira desceu e chamou pela mulher que estava quase morta. A mulher tinha cabelos dourados como o sol e estava a derreter na areia. A parteira perguntou mais uma vez e a mulher apontou o útero. Tinha perdido o filho e sido arrastada até ali para morrer sozinha, mas o homem que era dono de tudo disse para a parteira e um ajudante carregar a mulher dourada para o lombo de um camelo.
Ele tinha sonhado com aquela mulher na noite anterior e sabia o que tinha acontecido. Ela precisava lhe dizer alguma coisa importante. Então quase desfalecida, a mulher dourada sussurrou no ouvido da parteira que mudassem de direção, pois vinha uma tempestade de areia por ali.
E a parteira contou ao homem que era dono de tudo e a caravana mudou de caminho e escapou da tempestade.
O homem que era dono de tudo pediu que colocassem a mulher dourada no aposento dos criados e que a tratassem bem, mesmo ela tendo o ventre mutilado.
E no outro dia a mulher dourada acordou e falou. E os servos queriam saber de onde ela era. E ela abriu os olhos e eles eram da cor do mar mais profundo. Ela tinha vindo da ilha onde o mar era um Deus. Mas ela largara tudo pelo homem que a havia maculado.
E o homem que era dono de tudo pediu para vestirem a mulher dourada com as melhores roupas e as mulheres do homem que era dono de tudo ficaram curiosas e enciumadas. O que ele queria falar com ela?
A mulher dourada foi até o dono de tudo e esqueceu de se ajoelhar. Uma das esposas riu achando que o homem iria chutar sua perna para que se curvasse, mas ele se levantou para ficar da mesma altura que ela.
E ele perguntou na língua do deserto qual era a língua dela e ela disse que vinha da ilha cujo mar era um Deus. E ele perguntou de novo e ela falou que falava a língua dos homens brancos que vinham do mar. E o homem que era dono de tudo pediu que ela ensinasse seus filhos a falar a língua dos homens do mar. E ela obedeceu e ensinou.
Ela se dedicou com tal afinco às aulas que todos os filhos do homem que era dono de tudo gostavam dela, especialmente o mais novo que tinha os olhos negros como o do pai, mas o pai, diferente dele, usava um elmo cintilante do qual cordões desciam até o peito e tinha carvão passado nas pálpebras dos olhos.
E toda vez que o homem que era dono de tudo chamava a mulher dourada para saber se os filhos estavam obedecendo, ela ia até ele e se despedia sem se ajoelhar e desejava que ele não soubesse que ela tinha sido amaldiçoada. Que seu ventre era ressequido.
O homem que era dono de tudo sabia da maldição, mas decidiu fingir que não, pois aquela maldição era injusta e ele não gostava de injustiças.
E a mulher dourada todo dia ia do quarto das palavras até o quarto que dividia com a moça da cozinha passando em frente a uma larga faixa d´água. E ela sentia vontade de nadar nessa água assim como nadava no tempo de antes na terra cujo mar era um Deus, mas sabia que não podia. No entanto, um dia ela não aguentou e colocou os pés na água, mas tirou rápido para ninguém ver, porque a água do homem que era dono de tudo era uma água sagrada e ela era uma mulher profana que estaria morta no deserto se não a tivessem achado.
Foi então, que uma noite, sonhou que nadava no mar bravio da sua ilha e que tocava com as mãos a areia fina do fundo do mar. E a vontade de nadar lhe fora tão grande que ela colocou um pano sobre si e foi até a faixa d’água do homem que era dono de tudo e entrou nela. E ela nadou submersa como há muitos anos não nadava e a madrugada era bonita, e a água era boa, e havia estrelas brilhantes no céu.
O homem que era dono de tudo a viu nadando e chegou perto da borda. Na mesma hora ela saltou da água envergonhada. Ela tinha profanado a água do homem que era dono de tudo. Mas o dono de tudo disse que não contaria a ninguém e que ela podia voltar todas as madrugadas, pois tinha sua permissão para nadar. E ele enxergou o mar dos olhos dela transbordar de gratidão. E ele desejou nadar também naquelas águas que eram mais da mulher cujo mar era um Deus que dele porque ele era um homem do deserto e homens do deserto veneram a água, mas não são hábeis em nadar nela.
E toda madrugada ela voltava. E ele então pediu que ela lhe ensinasse a nadar. E ela assim fez e ele então lhe pediu que o ensinasse a falar a língua dos homens do mar. E ela o ensinou. E ele lhe contou que seu filho mais novo estava muito mais feliz desde que ela começara a lhe ensinar. E ela lhe contou da ilha de pedras grandes e de mar bravio. E falou da sua infância e de como o homem que quase a matou no deserto chegou até seu coração.
E ele entendeu que o homem de antes tentara cegá-la para que ninguém além dele pudesse ver o mar que vertia dos olhos dela. E ela se deu conta que tinha mesmo ficado cega, pois seus olhos não viram o que o homem de antes estava planejando fazer. E o homem de antes tentou secar todo o mar que havia nela. E ele encheu seu ventre e por ciúmes disse que o filho na barriga dela não era seu e então a esvaziou levando-a para o deserto para que apenas os animais rastejantes fossem testemunhas dos golpes que ele lhe daria. E quando ela afundou desmaiada na areia, ele a deixou ali para morrer como uma mulher seca e amaldiçoada. E ela aceitou morrer, mas sentiu muito pelo filho que não pudera ser testemunha do grande amor que ela sentia por ele.
E entre um mergulho e outro, o homem que era dono de tudo lhe contou que havia um lugar especial onde o deserto virava mar. E ela nunca tinha pensado que o deserto podia tocar o mar.
Um dia o homem que era dono de tudo disse que havia encontrado o homem que quase a matara no deserto e que iria até onde a encontraram caída para que ali acontecesse uma luta justa.
E ela pediu que ele deixasse para lá essa ideia e esquecesse do homem de antes. Mas o homem que era dono de tudo a lembrou que o homem de antes sabia que secando o ventre de uma mulher, pela superstição do deserto, ela seria amaldiçoada. Ele a lembrou que as leis do deserto eram diferentes das leis da ilha onde o mar era um Deus. No deserto algumas coisas tinham que ser decididas olho por olho e dente por dente. Ele também a lembrou que o homem de antes havia matado o próprio filho e que não existia perdão para quem matava o próprio filho.
Ela ficou em silêncio, pois tinha medo de perder o homem que era dono de tudo, pois gostava dele. Ela sabia que ele estava arriscando muito para resgatar a honra de uma mulher profana. Uma mulher amaldiçoada que fora largada em meio ao calor de um deserto sem fim.
Mas nada que ela dissesse faria o homem que era dono de tudo mudar de ideia. E as mulheres do homem que era dono de tudo a odiaram ainda mais por isso.
O homem que era dono de tudo sabia que o deserto não era muito de falar, mas uma vez tendo tido visões do deserto em sonhos, o homem que era dono de tudo jurou que encontraria aquele outro homem custasse o que custasse.
No outro dia o homem que era dono de tudo passou mais carvão nos olhos e ajoelhou-se diante dos Deuses do deserto do seu altar sagrado. Naquele dia ele pediu proteção para lutar como um mortal. Seria injusto invocar seu poder divino para lutar contra o homem de antes, mesmo ele sendo uma criatura tão desprezível.
E a mulher dourada não dormiu aquela noite. Ela passou a madrugada pedindo ao Deus do mar que protegesse o dono do deserto.
E o homem que era dono de tudo chamou a mulher dourada antes de partir e quando ela entrou no quarto sagrado, ele estava com a pele ainda mais dourada e com os olhos ainda mais negros.
E ela que de dia não podia chegar muito perto do homem que era dono de tudo, olhou-o em silêncio e ele viu nos olhos dela o mar bravio batendo contra as pedras da ilha cujo Deus era o mar. E ele pediu que ela o abençoasse na língua dela. E ela levantou as mãos e chorou o mar dos seus olhos. E ela cantou na língua da sua ilha. E ele agradeceu na língua do deserto e depois, sorrindo com o canto da boca, também agradeceu na língua que ela havia lhe ensinado. Ele sabia que para tocar terras estrangeiras era preciso entender de línguas, tradições e costumes. Esse era também o caminho para o coração de alguém.
E ele saiu e foi para o deserto. E no exato lugar onde a mulher dourada foi encontrada, um homem estava com as mãos amarradas ao lado de uma sentinela. E o homem que era dono do deserto desceu do seu cavalo e olhou demorado para o homem de antes. E o homem de antes disse que a mulher dourada não valia nada. E o homem de antes disse que ela não passava de uma vagabunda. E o homem que era dono de tudo percebeu que o homem de antes estava de novo golpeando a mulher da terra do mar sem que ela pudesse se defender. Ele estava tentando ferir a ideia que os outros tinham dela. E o homem que era dono de tudo enxergou o corpo da mulher dourada caindo outra vez na areia. As palavras da boca do homem de antes estavam dilacerando a verdade sobre ela.
Então o homem que era dono de tudo explicou ao homem de antes que ele era dono também do deserto e que o deserto tinha lhe contado em sonho toda a verdade. E que o deserto não mentia. Que um homem não tinha direito de golpear uma mulher e que agora a luta seria mais justa. E o homem de antes sorriu, pois achava que era um mestre com sua adaga e que seus punhos poderiam matar como matara antes. E o homem que era dono de tudo pediu que seus homens soltassem as mãos do homem de antes e que se afastassem. Assim o homem de antes ficou cara a cara com o homem que era dono de tudo e as serpentes do deserto saíram de suas tocas. E os chacais empoleiraram-se nas pedras próximas e as nuvens desapareceram de vez e no céu restou apenas o sol e na terra dois homens para uma luta.
O homem que era dono de tudo guardou a sua adaga na cintura, pois não desejava sujá-la com o sangue de um homem tão desprezível. Ele usaria apenas os próprios punhos e faria com eles exatamente o que o homem de antes ousara fazer com a mulher dourada. Ele também não daria o primeiro golpe, mas quando o homem de antes veio em sua direção com os dentes enervados, o homem que era dono de tudo o golpeou na barriga repetidas vezes para que sentisse a dor que a mulher dourada sentira. E o homem de antes jogou areia nos olhos do homem que era dono de tudo, mas ele não se deixou cegar. Pelo contrário, ele viu com mais clareza, pois o deserto era todo dele. E o homem de antes não entendia por qual razão aquele homem tão importante lutava com tanta vontade por uma mulher amaldiçoada. E o homem de antes foi golpeado e arrastado sem ter tempo para usar sua adaga maldita. O homem de antes lutou até perder a raiva e se deixar tomar pelo medo. E o medo nele gritava e suplicava. Mas o homem que era dono de tudo sabia que não havia perdão para um homem que tinha feito o que ele fez. E o homem com o coração sujo deixou de macular o mundo com sua presença. E a lei do deserto foi cumprida. No deserto era assim. E o deserto era justo, e o deserto nunca mentia.
Quando o homem que era dono de tudo chegou no quarto sagrado ele estava coberto de suor, areia e tinha o corpo todo arranhado. A mulher da ilha cujo mar era um Deus entendeu que no deserto a lei era outra e esperou até que o homem que era dono de tudo pudesse falar. E o homem que era dono de tudo pediu que a chamassem para que ele pudesse lhe contar o que havia acontecido.
E quando ela entrou no quarto sagrado, ele pediu que os homens saíssem e se aproximou dela. Seus olhos não eram mais negros. Seus olhos tinham um mar de areia neles. E ele tocou o cabelo dela e disse na língua do deserto que o outro homem já não era mais homem. E ele abaixou-se e beijou os pés dela e pediu perdão por todos os homens que tinham matado mulheres nos desertos de onde ele era dono. E ela deitou-se ao lado dele, e ela tocou o rosto dele e o agradeceu por ele ser tão bom. E ela agradeceu a todos os deuses por o terem protegido. E ela encostou a sua fronte na dele e viu nos olhos do homem que era dono de tudo como era bonito o lugar onde o mar tocava o deserto.
Acompanhe a autora Vanelli Doratioto no Instagram e no Facebook: @vanellidoratioto
Deixe um comentário