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Deusa Ixcacao
(texto traduzido de https://www.goddessgift.com)

Falando em Deuses

A Deusa do Chocolate / Cacau teve origens humildes, mas honrosas como uma deusa maia. Chamada Ixcacao, ela era uma antiga deusa da fertilidade, uma deusa da terra em uma sociedade matriarcal onde colher plantações e fazer com que todos fossem alimentados eram atividades realizadas pelas mulheres.

Acabar com a fome e garantir a segurança e a proteção do povo era uma responsabilidade divina.

O chocolate vem do cacau. Para os maias o cacaueiro era sagrado e o nome cacau significa “comida dos deuses”. Já, os astecas do México central atribuíram a criação dos grãos de cacau ao seu deus Quetzalcoatl que, como diz a lenda, desceu do céu carregando um cacaueiro roubado do paraíso. Assim como os maias, os astecas também entendiam que o cacau era um fruto sagrado, repleto de propriedades amorosas e especiais.

Muitas lendas falam da criação dos homens e de seus deuses em diversas civilizações. A seguir seguem lendas maias onde Ixcacao, a Deusa do Chocolate/ Cacau aparece.

Lenda: A Deusa do Chocolate e a criação da humanidade

“A avó, deusa Ixmucanè, estava preocupada.

Seus dois filhos tinham sido mortos durante uma aventura no submundo. E como muitas avós hoje, Ixmucanè foi incumbida de criar seus netos.

Uma vez que as mulheres faziam a maior parte do trabalho que era plantar, colher e cozinhar, os seus netos tinham bastante tempo livre. . . para se dedicar às profissões, às artes e à política. Embora seus netos fossem meninos excelentes e ela estivesse muito orgulhosa deles e de suas realizações (eles eram excelentes arquitetos, músicos, escultores e artistas), ela não podia deixar de se preocupar que algo muito vital estava desaparecendo do mundo e que, eventualmente, um dia aconteceria um certo “ajuste de contas”.

É que Ixmucanè era a última dos “adivinhos”, daqueles que tinham o conhecimento e eram sábios acerca dos caminhos da Terra. Ixmucanè podia sentir os ritmos da natureza correndo em suas veias. Ela era ‘vidente’ e tinha o dom da premonição e sabia como administrar sabiamente suas responsabilidades para com a Terra.

“O que acontecerá”, pensava ela, “quando eu envelhecer e o último como eu morrer?” E com essas reflexões sombrias, ela se assustou ao erguer os olhos e enxergar diante de si uma jovem grávida.

A jovem se aproximou da velha deusa com reverência e respirou longa e profundamente, tentando reunir coragem para falar.

“Avó, carrego dentro de mim filhos do seu filho que foi para o céu. Meu pai, o Senhor do Mundo Inferior, diz que o envergonhei e me expulsou. Não tenho nenhum outro lugar para ficar. Por favor, me acolha e deixe seus netos viverem com você embaixo do seu teto”.

“Como um dos meus filhos pode ser o pai?”, Perguntou a senhora. “Meus dois filhos morreram em sua terra!”

“Meu nome é Ixquic ou ‘Lua de Sangue’. Eu estava lá sob o arbusto de cabaça quando seu filho Hunahpu foi decapitado pelos soldados. Sua cabeça ensanguentada continuou a falar comigo depois que ele morreu. Cuspiu na minha mão e foi isso que me levou a conceber esses gêmeos que carrego na barriga”.

Ixmucanè ouviu a história e manteve-se compreensivelmente cética. “Deve ser uma anedota”, ela pensou, “Quem sabe quem realmente é o pai dessas crianças?”

Mas, assim como a deusa grega Afrodite fez com sua nora Psiquê, Ixmucanè fez um teste para saber se o que a jovem falava era verdade. (Ela teria, afinal, o prazer de aumentar sua linhagem se os gêmeos que estavam para nascer realmente fossem videntes como ela – na verdade, o futuro do reino podia até mesmo depender disso).

Então ela deu à jovem uma grande rede e disse: “Leve isto para o campo e não volte até que esteja cheio de comida.” Cheia de confiança de que ela poderia facilmente fazer isso, Ixquic dirigiu-se ao campo, onde descobriu que havia apenas uma planta crescendo. . . uma única espiga de milho selvagem.

O que ela deveria fazer?

Caindo de joelhos em desespero, ela pediu ajuda a outras deusas.

Ixcanil, Deusa da Semente, me ouça.
Ixtoq, Deusa da Chuva, me ajude.
Ixcacau, Deusa do Chocolate, veja minhas lágrimas
e venha em meu auxílio.

E elas vieram rapidamente em seu resgate.

Ixcanil ensinou-a a colher as sementes de uma espiga de milho e as abençoou para que germinassem.

Ixtoq trouxe a umidade nutritiva de que eles precisavam para crescer.

E Ixcacau, a Deusa do Chocolate, ensinou-lhe a plantar a semente, a cultivar e a colher o milho.

Então, Ixcacau ficou nas encostas mais baixas que cercam o vale, protegendo as plantas de crescimento rápido até que o vale se enchesse de caules maduros.

Quando terminou, Ixquic voltou com sua rede transbordando … tinha comida suficiente para um banquete.

Vendo o milagre, Ixmucanè a acolheu na família.

Então, no solstício de inverno, chegou a hora de Ixquic dar à luz. Ela foi para a floresta sozinha, como era o costume, e logo nasceram os dois filhos que se tornariam os “Gêmeos Sagrados”.

Embora não fossem reverenciados como divindades principais (mais como super-heróis ou semideuses), os gêmeos desempenharam um papel vital nos mitos da criação. Rapazes espertos, e com um pouco de malandragem, eles derrotaram as forças do Submundo, bem como outros inimigos dos deuses, e foram muito favorecidos pelas divindades.

O filho mais velho se chamava Hunaphu em homenagem ao pai. Em algumas narrativas dos mitos, ele era na verdade a reencarnação de seu pai, que havia voltado como humano e acabaria, à maneira de Cristo, sacrificando sua vida para salvar a humanidade. Quando levado aos céus, Hunaphu se tornou o deus do sol.

O irmão mais novo, Xbalanquè, foi associado à lua cheia e com sua morte, significando o fim dos tempos matriarcais, ele foi transformado em mulher e tornou-se Ixbalanquè, a deusa da lua”.

A Deusa do Chocolate como Ícone Religioso:
Fornecendo o Alimento dos Deuses ao Patriarcado

Embora raramente aparecesse publicamente nos mitos, Ixcacao, a Deusa Maia do Chocolate, era amada pelo povo como uma deusa compassiva e de abundância. Como a deusa grega Deméter, ela havia caminhado entre as pessoas, compreendendo seu sofrimento e seu medo da fome, enquanto graciosamente lhes dava o conhecimento e as ferramentas de que precisavam não apenas para sobreviver, mas para criar uma vida de abundância. (Sem falar que compartilhava generosamente o sabor requintado do chocolate e a energia que ele fornecia para o trabalho!)

Mas isso logo mudaria!

No início, parecia uma época de ouro. Reis e dinastias apareceram. Uma classe dominante nasceu.

A astronomia floresceu, assim como as artes. A escrita (glifos) surgiu e começaram a surgir magníficos monumentos, palácios e templos dos reis, assim como construções dos nobres. Grandes cidades foram estabelecidas e povoadas por pessoas ricas.

Cada rei atuou como um sumo sacerdote. Ter uma relação familiar com os deuses o capacitaria a trazer chuva e prosperidade ao seu reino, razão pela qual os camponeses estavam dispostos a trabalhar para sustentar o estilo de vida luxuoso do rei e de sua corte.

Então a pobre Deusa do Chocolate foi levada para longe dos campos para se casar com Ek Chuah, o Deus do Comércio, quisesse ela ou não. Logo seus adoráveis ​​grãos de cacau foram transformados em moeda – 40 grãos comprariam um burro, por exemplo. Os impostos dos trabalhadores eram também pagos com os grãos, deixando-lhes poucos, se é que algum, para usufruírem para si próprios.

As mulheres e crianças foram proibidas de desfrutar do cacau/chocolate. . . agora ele era proibido e declarado ‘alimento dos deuses’, disponível apenas para os governantes e guerreiros a seu serviço.

Isso quase partiu o coração de Ixcacao. 

Deusa Maia do Cacau - IxCacao

A Deusa do Chocolate
Lenda: Ixcacao abençoada pela Deusa do Amor

“Amiga, precisamos conversar”, disse Huitaca.

“Você sempre viveu muito perto das pessoas. Eu vi você dando as boas-vindas aos campos todas as noites, juntando-se a eles enquanto se reuniam ao redor da fogueira para assar o milho, contando histórias e desfrutando de seus presentes.

Mas agora eles têm que trabalhar tanto e até tarde da noite que adormecem imediatamente e caem em sono profundo sem sonhos.

Foi-se o riso que fazia brilhar até as estrelas enquanto contavam suas histórias ao redor da fogueira à noite.

Foram-se as flores e os animais que bordavam em seus vestidos. Foram-se as cores brilhantes que tornavam seus cobertores tão quentes e ousados.

A música e a dança que refletiam a beleza de sua deusa no céu noturno se foram.

E se foi a alegria que fazia o trabalho valer a pena.

Tudo se foi e eu não posso suportar essa ideia. Eu preciso de sua ajuda. Temos que bolar um plano. “

E que plano inteligente era. A Deusa do Chocolate ensinaria os cozinheiros dos reis a fermentar o cacau e torná-lo inebriante. Ela ‘deixou escapar’ que era um poderoso afrodisíaco. Mesmo o chocolate que conhecemos hoje parece ter em si essa essência amorosa que dá a quem come ou bebe a sensação maravilhosa de se apaixonar.

Então veio um tempo de gula desenfreada e guerra entre vários estados. Os aristocratas começaram a considerar o trabalho de qualquer espécie como algo abaixo de sua dignidade e viveram em seus belos palácios, alheios ao sofrimento humano de que dependia seu estilo de vida.

Reinos surgiram e reinos caíram. Enfraquecidos pela guerra, os maias foram derrotados pelos astecas (da região do México) que, felizmente, admiraram sua religião e incorporaram a deusa do chocolate à sua.

Tal como Ixmucanè previu, ninguém com autoridade prestava atenção aos estrondos da terra. Havia muita gente e pouca terra disponível para a horticultura e as terras que existiam não podiam produzir alimentos porque metade dos trabalhadores estava indo para a guerra ou a própria terra estava sendo usada como campo de batalha. As pessoas estavam desnutridas ou morrendo de fome.

Mamma Cane ( Ixmucanè ) estava certa em se preocupar!

Enfraquecidos pelo excesso e pelas guerras constantes entre si, os povos nativos não resistiram muito quando os exploradores espanhóis e os conquistadores chegaram, trazendo consigo uma doença estrangeira (“varíola”) que seus corpos enfraquecidos não puderam combater. A doença trazida pelos espanhóis quase eliminou todas as pessoas nativas.

Os espanhóis queimaram os livros que contavam as histórias nativas dos mitos da criação.

Depois de muito tempo apenas, alguns padres, encorajaram os povos nativos a registrarem suas histórias e seus mitos, mas em latim, a língua da igreja espanhola. Infelizmente, a essa altura, muito havia sido esquecido e perdido.

A Deusa do Chocolate retorna

Bem, não havia como negar que algumas coisas deram errado. Mas Huitaca, a Deusa do Amor e do Prazer, estava grata pelo papel que a Deusa do Chocolate havia desempenhado. E para mostrar seu agradecimento, ela adornou Ixcacao da cabeça aos pés com delicadas flores brancas que tremulavam com os ventos suaves.

E assim, coberta de beleza, Ixcacao, a Deusa do Chocolate pôde retornar ao seu povo – desta vez tanto como a deusa da fertilidade que vigiava os campos de milho e que cuidava para que seu povo se alimentasse, mas também como uma rainha de amor e prazer.

“Não há mais trabalho sem descanso.
Chega de trabalhar sem tempo para família e amigos
e tempo para música e dança.
E acima de tudo . . .Não há mais trabalho sem amor”.

Declarou a deusa Ixcacao.

Refletindo sobre os mitos da Deusa do Chocolate, a sabedoria de Ixcacao é um adorável contraponto à agitação moderna voltada para a produção frenética de bens com fins lucrativos e gananciosos.

A Deusa do Chocolate nos lembra que um mundo próspero se desdobra diante de nossos olhos, bastando que paremos um momento para nos alegrar com as coisas simples da vida que nos dão prazer e alegria.

As Cerimônias do Cacau

Atualmente no Brasil, e em diversas partes do mundo, diversos terapeutas estão resgatando as memórias da deusa Ixcacao através de cerimônias do cacau. Cada condutor habilitado é chamado de “Guardião do cacau” e conduz a cerimônia de forma particular e sempre há durante a mesma a degustação do cacau. O guardião do cacau pode ser homem ou mulher.

Indico dois espaços terapêuticos para os interessados em participar da Cerimônia do Cacau:

. Sagrada Espiral, espaço de terapia holística, de responsabilidade do guardião do cacau e terapeuta Júlio Archanjo (@julioarchanjo no instagram). Site: http://www.julioarchanjo.com.br

. Inti Path, escola espiritualista, na qual as cerimônias do cacau são conduzidas pelo sacerdote andino Giuliano Salas (@giulianosalas no instagram). Site: http://www.intipath.com

As cerimônias podem acontecer online ou presencialmente respeitando as diretrizes da OMS e as datas e custos devem ser consultados com os respectivos espaços.

Toda a informação da deusa foi traduzida do inglês para facilitar o acesso de material de pesquisa, mas tenho ciência de que há muito mais dessa deusa do que podemos mensurar.

Uma mulher no deserto

Existia uma mulher caída no meio do deserto. Estava quase morta. E a caravana que passava tentou ignorar a mulher e sua dor. Mas aquele que era o dono de tudo pediu que parassem. E a parteira desceu e chamou pela mulher que estava quase morta. A mulher tinha cabelos dourados como o sol e estava a derreter na areia. A parteira perguntou mais uma vez e a mulher apontou o útero. Tinha perdido o filho e sido arrastada até ali para morrer sozinha, mas o homem que era dono de tudo disse para a parteira e um ajudante carregar a mulher dourada para o lombo de um camelo.

Ele tinha sonhado com aquela mulher na noite anterior e sabia o que tinha acontecido. Ela precisava lhe dizer alguma coisa importante. Então quase desfalecida, a mulher dourada sussurrou no ouvido da parteira que mudassem de direção, pois vinha uma tempestade de areia por ali.

E a parteira contou ao homem que era dono de tudo e a caravana mudou de caminho e escapou da tempestade.

O homem que era dono de tudo pediu que colocassem a mulher dourada no aposento dos criados e que a tratassem bem, mesmo ela tendo o ventre mutilado.

E no outro dia a mulher dourada acordou e falou. E os servos queriam saber de onde ela era. E ela abriu os olhos e eles eram da cor do mar mais profundo. Ela tinha vindo da ilha onde o mar era um Deus. Mas ela largara tudo pelo homem que a havia maculado.

E o homem que era dono de tudo pediu para vestirem a mulher dourada com as melhores roupas e as mulheres do homem que era dono de tudo ficaram curiosas e enciumadas. O que ele queria falar com ela?

A mulher dourada foi até o dono de tudo e esqueceu de se ajoelhar. Uma das esposas riu achando que o homem iria chutar sua perna para que se curvasse, mas ele se levantou para ficar da mesma altura que ela.

E ele perguntou na língua do deserto qual era a língua dela e ela disse que vinha da ilha cujo mar era um Deus. E ele perguntou de novo e ela falou que falava a língua dos homens brancos que vinham do mar. E o homem que era dono de tudo pediu que ela ensinasse seus filhos a falar a língua dos homens do mar. E ela obedeceu e ensinou.

Ela se dedicou com tal afinco às aulas que todos os filhos do homem que era dono de tudo gostavam dela, especialmente o mais novo que tinha os olhos negros como o do pai, mas o pai, diferente dele, usava um elmo cintilante do qual cordões desciam até o peito e tinha carvão passado nas pálpebras dos olhos.

E toda vez que o homem que era dono de tudo chamava a mulher dourada para saber se os filhos estavam obedecendo, ela ia até ele e se despedia sem se ajoelhar e desejava que ele não soubesse que ela tinha sido amaldiçoada. Que seu ventre era ressequido.

O homem que era dono de tudo sabia da maldição, mas decidiu fingir que não, pois aquela maldição era injusta e ele não gostava de injustiças.

E a mulher dourada todo dia ia do quarto das palavras até o quarto que dividia com a moça da cozinha passando em frente a uma larga faixa d´água. E ela sentia vontade de nadar nessa água assim como nadava no tempo de antes na terra cujo mar era um Deus, mas sabia que não podia.  No entanto, um dia ela não aguentou e colocou os pés na água, mas tirou rápido para ninguém ver, porque a água do homem que era dono de tudo era uma água sagrada e ela era uma mulher profana que estaria morta no deserto se não a tivessem achado.

Foi então, que uma noite, sonhou que nadava no mar bravio da sua ilha e que tocava com as mãos a areia fina do fundo do mar. E a vontade de nadar lhe fora tão grande que ela colocou um pano sobre si e foi até a faixa d’água do homem que era dono de tudo e entrou nela. E ela nadou submersa como há muitos anos não nadava e a madrugada era bonita, e a água era boa, e havia estrelas brilhantes no céu.

O homem que era dono de tudo a viu nadando e chegou perto da borda. Na mesma hora ela saltou da água envergonhada. Ela tinha profanado a água do homem que era dono de tudo. Mas o dono de tudo disse que não contaria a ninguém e que ela podia voltar todas as madrugadas, pois tinha sua permissão para nadar. E ele enxergou o mar dos olhos dela transbordar de gratidão. E ele desejou nadar também naquelas águas que eram mais da mulher cujo mar era um Deus que dele porque ele era um homem do deserto e homens do deserto veneram a água, mas não são hábeis em nadar nela.

E toda madrugada ela voltava. E ele então pediu que ela lhe ensinasse a nadar. E ela assim fez e ele então lhe pediu que o ensinasse a falar a língua dos homens do mar. E ela o ensinou. E ele lhe contou que seu filho mais novo estava muito mais feliz desde que ela começara a lhe ensinar. E ela lhe contou da ilha de pedras grandes e de mar bravio. E falou da sua infância e de como o homem que quase a matou no deserto chegou até seu coração.

E ele entendeu que o homem de antes tentara cegá-la para que ninguém além dele pudesse ver o mar que vertia dos olhos dela. E ela se deu conta que tinha mesmo ficado cega, pois seus olhos não viram o que o homem de antes estava planejando fazer. E o homem de antes tentou secar todo o mar que havia nela. E ele encheu seu ventre e por ciúmes disse que o filho na barriga dela não era seu e então a esvaziou levando-a para o deserto para que apenas os animais rastejantes fossem testemunhas dos golpes que ele lhe daria. E quando ela afundou desmaiada na areia, ele a deixou ali para morrer como uma mulher seca e amaldiçoada. E ela aceitou morrer, mas sentiu muito pelo filho que não pudera ser testemunha do grande amor que ela sentia por ele.

E entre um mergulho e outro, o homem que era dono de tudo lhe contou que havia um lugar especial onde o deserto virava mar. E ela nunca tinha pensado que o deserto podia tocar o mar.

Um dia o homem que era dono de tudo disse que havia encontrado o homem que quase a matara no deserto e que iria até onde a encontraram caída para que ali acontecesse uma luta justa.

E ela pediu que ele deixasse para lá essa ideia e esquecesse do homem de antes. Mas o homem que era dono de tudo a lembrou que o homem de antes sabia que secando o ventre de uma mulher, pela superstição do deserto, ela seria amaldiçoada. Ele a lembrou que as leis do deserto eram diferentes das leis da ilha onde o mar era um Deus. No deserto algumas coisas tinham que ser decididas olho por olho e dente por dente. Ele também a lembrou que o homem de antes havia matado o próprio filho e que não existia perdão para quem matava o próprio filho.

Ela ficou em silêncio, pois tinha medo de perder o homem que era dono de tudo, pois gostava dele. Ela sabia que ele estava arriscando muito para resgatar a honra de uma mulher profana. Uma mulher amaldiçoada que fora largada em meio ao calor de um deserto sem fim.

Mas nada que ela dissesse faria o homem que era dono de tudo mudar de ideia. E as mulheres do homem que era dono de tudo a odiaram ainda mais por isso.

O homem que era dono de tudo sabia que o deserto não era muito de falar, mas uma vez tendo tido visões do deserto em sonhos, o homem que era dono de tudo jurou que encontraria aquele outro homem custasse o que custasse.

No outro dia o homem que era dono de tudo passou mais carvão nos olhos e ajoelhou-se diante dos Deuses do deserto do seu altar sagrado. Naquele dia ele pediu proteção para lutar como um mortal. Seria injusto invocar seu poder divino para lutar contra o homem de antes, mesmo ele sendo uma criatura tão desprezível.

E a mulher dourada não dormiu aquela noite. Ela passou a madrugada pedindo ao Deus do mar que protegesse o dono do deserto.

E o homem que era dono de tudo chamou a mulher dourada antes de partir e quando ela entrou no quarto sagrado, ele estava com a pele ainda mais dourada e com os olhos ainda mais negros.

E ela que de dia não podia chegar muito perto do homem que era dono de tudo, olhou-o em silêncio e ele viu nos olhos dela o mar bravio batendo contra as pedras da ilha cujo Deus era o mar. E ele pediu que ela o abençoasse na língua dela. E ela levantou as mãos e chorou o mar dos seus olhos. E ela cantou na língua da sua ilha. E ele agradeceu na língua do deserto e depois, sorrindo com o canto da boca, também agradeceu na língua que ela havia lhe ensinado. Ele sabia que para tocar terras estrangeiras era preciso entender de línguas, tradições e costumes. Esse era também o caminho para o coração de alguém.

E ele saiu e foi para o deserto. E no exato lugar onde a mulher dourada foi encontrada, um homem estava com as mãos amarradas ao lado de uma sentinela. E o homem que era dono do deserto desceu do seu cavalo e olhou demorado para o homem de antes. E o homem de antes disse que a mulher dourada não valia nada. E o homem de antes disse que ela não passava de uma vagabunda. E o homem que era dono de tudo percebeu que o homem de antes estava de novo golpeando a mulher da terra do mar sem que ela pudesse se defender. Ele estava tentando ferir a ideia que os outros tinham dela. E o homem que era dono de tudo enxergou o corpo da mulher dourada caindo outra vez na areia. As palavras da boca do homem de antes estavam dilacerando a verdade sobre ela.

Então o homem que era dono de tudo explicou ao homem de antes que ele era dono também do deserto e que o deserto tinha lhe contado em sonho toda a verdade. E que o deserto não mentia. Que um homem não tinha direito de golpear uma mulher e que agora a luta seria mais justa. E o homem de antes sorriu, pois achava que era um mestre com sua adaga e que seus punhos poderiam matar como matara antes. E o homem que era dono de tudo pediu que seus homens soltassem as mãos do homem de antes e que se afastassem. Assim o homem de antes ficou cara a cara com o homem que era dono de tudo e as serpentes do deserto saíram de suas tocas. E os chacais empoleiraram-se nas pedras próximas e as nuvens desapareceram de vez e no céu restou apenas o sol e na terra dois homens para uma luta.

O homem que era dono de tudo guardou a sua adaga na cintura, pois não desejava sujá-la com o sangue de um homem tão desprezível. Ele usaria apenas os próprios punhos e faria com eles exatamente o que o homem de antes ousara fazer com a mulher dourada. Ele também não daria o primeiro golpe, mas quando o homem de antes veio em sua direção com os dentes enervados, o homem que era dono de tudo o golpeou na barriga repetidas vezes para que sentisse a dor que a mulher dourada sentira. E o homem de antes jogou areia nos olhos do homem que era dono de tudo, mas ele não se deixou cegar. Pelo contrário, ele viu com mais clareza, pois o deserto era todo dele. E o homem de antes não entendia por qual razão aquele homem tão importante lutava com tanta vontade por uma mulher amaldiçoada. E o homem de antes foi golpeado e arrastado sem ter tempo para usar sua adaga maldita. O homem de antes lutou até perder a raiva e se deixar tomar pelo medo. E o medo nele gritava e suplicava. Mas o homem que era dono de tudo sabia que não havia perdão para um homem que tinha feito o que ele fez. E o homem com o coração sujo deixou de macular o mundo com sua presença. E a lei do deserto foi cumprida. No deserto era assim. E o deserto era justo, e o deserto nunca mentia.

Quando o homem que era dono de tudo chegou no quarto sagrado ele estava coberto de suor, areia e tinha o corpo todo arranhado. A mulher da ilha cujo mar era um Deus entendeu que no deserto a lei era outra e esperou até que o homem que era dono de tudo pudesse falar. E o homem que era dono de tudo pediu que a chamassem para que ele pudesse lhe contar o que havia acontecido.

E quando ela entrou no quarto sagrado, ele pediu que os homens saíssem e se aproximou dela. Seus olhos não eram mais negros. Seus olhos tinham um mar de areia neles. E ele tocou o cabelo dela e disse na língua do deserto que o outro homem já não era mais homem. E ele abaixou-se e beijou os pés dela e pediu perdão por todos os homens que tinham matado mulheres nos desertos de onde ele era dono. E ela deitou-se ao lado dele, e ela tocou o rosto dele e o agradeceu por ele ser tão bom. E ela agradeceu a todos os deuses por o terem protegido. E ela encostou a sua fronte na dele e viu nos olhos do homem que era dono de tudo como era bonito o lugar onde o mar tocava o deserto.

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love-couple-black-kiss-faces-window-minimalisticUm dia sonhei com Paulo. Ele vestia preto e no meu sonho estava de costas. Naquele sonho ele gritava. Gritava e pedia que eu me lembrasse da força que existia em mim. “Você se esqueceu da força que tem?” ele perguntava repetidas vezes. “Você se esqueceu de quem é?”. Eu tinha me esquecido e apesar de despertar mais atenta eu continuei a me esquecer das coisas sobre mim. “Você pode arrastar tudo se quiser”. Eu me esqueci de que eu era mais forte que as circunstâncias que tentavam me aprisionar.

E hoje não em sonho, mas em vida, como quem surge do mundo dos mortos, você aparece vestido de preto, como Paulo, para me dizer que fui humilde demais. Que aceitei muita coisa. Que eu deveria ter me levantado e virado a mesa. Que eu devia ter gritado e sido impiedosa com quem foi impiedoso comigo.

Você aparece e me diz que fui boa demais. Que eu aceitei me aprisionar, enquanto tinha a força para arrebentar tudo se eu quisesse. Hoje você vem com estes olhos, que são só seus, e me diz que eu deveria ter dito verdades ríspidas no lugar de silenciar. Que eu deveria ter saído de mim e me tornado tudo que sou.

Hoje você me vem e diz que admira a força quando ela é sincera e incisiva e pede que eu seja sincera ao dizer o que acho de tudo. Que o silêncio não me cai bem. Você vem e me diz que eu deveria dar-lhe um tapa, o tapa que nunca dei em quem quase acabou comigo. Que você merece isso por ter me deixado tanto tempo à mercê da sorte.

Hoje você vem e me abraça com a tua escuridão. Diz que devo ser cautelosa ao confiar. Hoje você vem e me veste de noite para que eu veja a luz das estrelas guias.

Texto de Vanelli Doratioto.

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pexels-photo-68084Vou me entregar pra ti. Vou entregar meu sorriso e minhas dores. Cura-me, médico da alma. Existem tantas feridas que não fecham, tantas dores que não saram. Cura-me com teu carinho. Com a tua intenção em me ver melhor. Com a tua vontade de me amar imperfeita como sou.

Existe tanta chuva por esses lados. As águas vêm e varrem quase tudo. Apenas o essencial fica. O essencial sempre fica. Que você possa vencer esses caminhos tortos e enlameados e me encontrar naquilo que restou depois que os sonhos se transformaram.

Disseram-me que você viria. Disseram-me que não demoraria. Mas foram tantos e tantos anos. E eu me descuidei. Eu me deixei levar rendida pelo que parecia ser o mais correto. O mais normal. E agora? Todos partiram até mesmo o tempo.

Só você é capaz de entender o que tento lhe dizer. Só você é capaz de me ouvir ao longe. Só você entende o que diz o meu coração, mesmo quando ele parece irremediavelmente calado.

Médico de almas, escolhe a cura e dá-me para beber. Escolhe ficar para mais que uma noite que eu posso ser o teu conforto. Que eu posso ser o teu alimento. Que eu posso ser teu abrigo em dias cinzas como o de hoje. Escolhe ficar e ensina-me a estancar feridas. Ensina-me a ter fé no homem e a crer piamente nesse Deus bom que permite o finito e o infinito em nós.

Médico, diz quais são seus tormentos que de tormentas eu entendo. Deixa eu bordar minha história na sua e fazer outras vidas das nossas. Deixa-me fazer outros mundos dos escombros dos nossos anseios perdidos. Ajuda-me a acreditar.

Cura-me com teu amor. Que remédio há no mundo tão bom quanto esse? Eu esqueci o gosto dele. Eu esqueci de acreditar no fim da dor.

Mas acredito em ti e na forma como tece o melhor no mundo. Acredito no teu amor. Acredito no bem que torna possível momentos felizes como esse em que te ouço chegando embaixo de toda essa chuva. E você vem com um sorriso nos lábios. Com tanto amor. Com tanta vontade de fazer tudo dar certo.

Fica. Fica sob esse telhado. Fica que a tua chegada vale uma vida de espera.

Fica que a ansiedade me escapou há tempos. Agora sou a gota de água que contorna mansa a janela dessa morada. Agora sou sua.

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Atribuição da imagem: pexels.com – CC0 Public Domain

cigano

Ela saiu de casa quando já era noite. Apressada para chegar ao mercado antes dele fechar.

Precisava de mais farinha e essências para que a mãe, boleira, terminasse, uma encomenda.

Pegou tudo afoita, agradeceu à moça do caixa e saiu correndo pelas ruas de paralelepípedos mal iluminadas que a levariam até sua casa.

Notou no meio do caminho que alguém a seguia. Respirou fundo e olhou para trás com o canto dos olhos. Um rapaz jovem estava agachado catando na rua pequenos vidrinhos. Quando ele chegou mais perto ela percebeu que eram suas essências que tinham caído por algum buraco da sacola.

“Desastrada”- pensou consigo ao mesmo tempo em que pousou os olhos no rosto do homem para agradecer. Notou pelas roupas que ele fazia parte do acampamento de ciganos que chegara há pouco na cidade.

Ele tinha brincos de argola dourados nas orelhas e um contorno em torno dos olhos, algo como um lápis preto passado com força e precisão. Os olhos eram verdes. A pele dourada e diferente do que imaginou, não viu nenhum dente de ouro na boca dele.

Ela agradeceu a gentileza e rapidamente juntou todos os frascos. O último ela puxou com pressa da mão do cigano que antes de soltá-lo, segurou uma de suas mãos.

– Oh, não tenho um tostão, gastei tudo no mercado. Por favor, não leia minha mão – ela falou com sinceridade.

-Não vou ler sua mão. Não para ti. Não vou te pedir coisa alguma.

Ela se desculpou. Julgou mal o rapaz. Por tudo que já ouvira achou que ele queria arranjar um jeito de conseguir dinheiro. Mas esse não parecia realmente o caso.

Sem demora ele esticou o braço e tirou dele uma pulseira com um nome gravado nela. Tiago estava escrito no metal com uma delicada caligrafia.

-Não posso aceitar. O que direi quando perguntarem onde arranjei a pulseira?

-Você não precisa dizer nada. Talvez que tenha sido um presente. Costumamos dar presentes.

-Para estranhos que encontram no meio da rua? – ela perguntou surpresa.

-Não, para as mulheres com as quais um dia iremos nos casar. E terminando de falar isso, com um sorriso nos lábios, Tiago seguiu seu caminho, carregando consigo a certeza de que voltaria a encontrar aquela mulher.

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Ela desceu as escadas devagar para não fazer barulho. Ele já esperava por ela. Ela queria lhe dizer o que tinha pensado, mas não sabia se ele compreenderia. Desde o início ficou tão óbvio que eram tão diferentes. Que suas crenças eram tão antagônicas. Ela queria lhe dizer que iria sentir muito a sua falta quando finalmente partisse. E o dia da partida estava chegando.

Ela sentiria falta da respiração dele, daquela respiração serena que a fazia lembrar da doce melodia de pinheiros. Daqueles olhos verdes dos quais lágrimas vertiam feito folhas macias a forrar o chão de uma frondosa floresta. O peito dele era uma floresta de onde a vida brotava carinhosa. Ela gostaria de deitar naquele peito e descansar em sua maciez doce e tentadora.

Ela sorriu para ele. Ele pediu que se aproximasse. Ela se sentou na beira da cama. Olhou sobre a blusa dele a marca do machucado do começo do mês. Ele estava curado. Já podia voar como um pássaro livre de volta ao lar.

O lugar dele não era ali. Ele precisava ir. Ela mordeu os lábios e sorriu quando ele lhe contou alguma coisa boba sobre o que tinha descoberto no livro que ela esquecera no quarto.

Ela estava mais quieta que de costume, estava tímida pela tentação de querer ele só para si. Por desejá-lo como nunca desejara antes. Ele estendeu-lhe a mão. Ela lhe entregou os dedos. Ele lhe entregou o livro. Dentro do livro ela encontraria muitas das respostas as quais havia buscado por tempos.

Ele disse que havia gostado da escritora. Ela amava aquela senhora. Queria se possível um dia conhecê-la. Ele notou que o olhar dela estava diferente. Ele sentiu a respiração dela ofegante cortando o ar. Esmiuçando o silêncio como fogo transformando papel em cinzas. O livro já tinha queimado em suas mãos.

Ela desejava. Não conseguia pensar em mais nada. Ele desejava também e entendeu que teria que dar o primeiro passo para libertá-la das suas amarras. Ele a puxou para si. Ele a segurou entre seus braços. E ela pensou que estava em um paraíso com cheiro de manhã.

Ele beijou sua boca doce. Bebeu dela como se bebe de uma fonte terna. Com carinho e delicadeza. Ele voaria, mas não sem antes libertá-la.

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Um dia me roubaram o nome. Então eu andava pelas ruas e ninguém sabia como me chamar.

Eu ia aos lugares e as pessoas não me pronunciavam. Oh meu Deus, não quero que outra pessoa passe pelo que passei. Tive o nome roubado e não houve alguém a quem pude reclamar o nome que me foi tomado.

As pessoas me olhavam e viam outra. Uma outra que eu não conhecia. As pessoas me chamavam de mentirosa quando eu dizia que eu era eu. Eu falava que aquilo era um engano e elas riam de mim, como se eu fosse uma piada de muito mau gosto.

Eu procurava restos de espelhos pelo chão, me olhava e dizia: Calma, você ainda está aí. Tudo isso vai passar.

Então eu me pelava de medo. Medo do amor chegar e não me encontrar. Do amor não conseguir me encontrar porque só eu sabia que era eu. Só eu tinha voz para me chamar naquele pedaço de mundo. Mas até quando eu teria forças para me dizer? Até quando eu teria forças para ser eu? Até quando eu conseguiria sozinha dizer que eu não era quem achavam que eu era?

Acho que teve dia que cheguei a falar 33 vezes para 33 pessoas diferentes meu nome. Elas me paravam na rua, no mercado, na feira, nas festas. Elas corriam atrás de mim, me puxavam pelo braço e me cobravam. Diziam eu devia conhecê-las. Então eu percebi. Uma outra estava vivendo a minha vida. Estava enchendo toda a minha cidade de si. E fazia de tal forma que as pessoas se esqueciam de me lembrar.

Então eu pegava meu carro e ia para longe. Chegava em uma outra cidade, entrava no museu deserto de manhã. Olhava para o guarda e dizia. Matheus, sabe quem sou? E ele dizia meu nome.

Matheus nunca entendeu o alívio que eu sentia quando ele me pronunciava. Quando ele me salvava do mundo. As pessoas então iam entrando por aquela imensa porta centenária, me chamavam e me enchiam de um contentamento indescritível.

A minha colega de trabalho, a linda francesa de olhos verdes, ria quando eu contava que só ali, naquele museu diminuto eu era eu. Que lá fora uma legião de gente se torcia de rir quando eu me dizia. Ah, meu Deus, só o Matheus e a deusa francesa sabiam de mim. Só eles e aqueles que visitavam o lugar e me pediam uma breve explicação, sabiam de mim.

Lá fora uma outra existia no mundo. Uma outra ocupava todos os espaços. Uma outra tinha roubado meu nome.

Se eu pudesse dormiria no porão do museu, naquele espaço entulhado de antigas preciosidades, dormiria feliz ali abraçada aos escombros de peças incompletas. Mas a noite implacável me dizia, fria, que eu precisava voltar para aquele espaço no mundo cheio de pessoas que não me sabiam, mas que ousavam duvidar da minha verdade.

Eu dormia recitando meu nome como um mantra. Eu precisava sobreviver.

O tempo haveria de passar. Eu só precisava ser forte para não me deixar levar por tudo aquilo que não tinha sido criado por mim. Por tudo aquilo que tinha sido criado por outra, que não eu. Eu precisava me lembrar para sobreviver.

Eu sobrevivi.

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Correu para sentar-se à mesa. Ajeitou o vestido e se colocou em frente ao prato. Do outro lado da mesa estava o marido.

Ela respirou fundo e olhou de soslaio para o porta-retrato em cima do aparador. Lá estavam os antepassados do cônjuge. Todos sentados sorrindo em uma daquelas fotos de família em preto e branco. No centro do retrato o patriarca com grande barba parecia olhar fixo para quem o fitasse.

Ela já tinha percebido isso e não importava a posição em que estava, o homem parecia acompanhá-la com os olhos. Sabia das histórias daquele homem, tinha sido deveras ruim. Maltratou e humilhou a todos. Causou demasiada dor por onde passou. Um arrepio subiu-lhe pelas costas.

À princípio ela não tinha notado, mas agora parecia evidente que o marido guardava alguma semelhança física com o velho. Tinha os mesmos olhos caídos. Os mesmos trejeitos. E agora a mesma barba que fazia questão de alisar puxando-a insistentemente com os dedos.

Então o homem com quem se casara, de barba cortada e queixo pequeno estava desaparecendo frente aos seus olhos. A cada dia parecia que o homem do retrato dava um novo passo para fora de lá.

Durante o jantar ela falou sobre coisas triviais. Contou futilidades para fingir certo conforto. Ele não respondeu. Dizia que não precisava responder. Que ela já sabia todas as respostas. Terminou de comer e ao final sorriu-lhe com os dentes repletos de fumo. O mesmo que seu avô fumava compulsivamente.

Ela precisava fazer algo. Sabia que não podia deixar as coisas caminharem para onde estavam caminhando. Sorriu para o marido, acenando-lhe com as mãos enquanto pensava em alguma solução. Bufou de novo e voltou a olhar para o velho no retrato.

Não, ele não sairia dali. Ela não permitiria.

Ela puxou todas as gavetas em busca de uma lâmina de barbear. Sabia que o marido dormia pesado e naquela noite acabaria com aquele circo.

Esperou que ele fosse se deitar. Trancou-se no banheiro. Ficou lá tempo suficiente para que ele começasse a roncar. Saiu pisando na ponta dos pés e com a espuma de barbear em uma das mãos e a lâmina na outra raspou toda aquela barba. Raspou cautelosa para que ele não acordasse e empurrando tudo para baixo da cama, deitou de lado e dormiu serena.

No outro dia o marido acordou e num impulso instintivo foi alisar a barba, mas ela não estava lá. Ele correu para o espelho e ficou estupefato com o que viu. Ela sentou-se na cama e deu bom retorno ao homem com quem havia se casado.

– Seja bem-vindo, meu querido! Foi longo o tempo de sua ausência, contudo finalmente está de volta.

Os dois então se abraçaram demorado e, entre um suspiro e outro, ela riu do velho que achou que seria mais forte que ela.

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Um belo dia estamos a caminhar ao lado do nosso cachorro e ele, inexplicavelmente, nos crava os dentes. A dor física é imensa, mas a dor emocional é ainda maior. Que outro cachorro nos mordesse, vá lá, mas o nosso próprio cachorro?!

Metáforas à parte, dói demais ser machucado por quem acreditávamos ser de confiança. Dói demais ouvir ofensas de alguém a quem confiamos segredos e dedicamos tempo, carinho e cuidado.

Dói demais ouvir tudo o que contamos em completa confiança ser usado contra nós, ser atirado em nossa cara sem dó nem piedade. Dói ver planos roubados. Dói notar que nos enganados redondamente em relação a uma pessoa.

A dor de uma mordida assim é gritante. Junto dela vem um monte de sensações tristes e, diferente de como nos portamos em relação àqueles que mal conhecemos, quando a mordida vem de alguém próximo, a gente se culpa, se deixa abater e fica meio passado mesmo.

Ah, mas se pararmos para pensar a pessoa que nos pegou de surpresa já tinha dado indícios de que poderia morder doído. Ela já tinha feito um comentário maldoso. Já tinha um histórico o qual resolvemos ignorar. Ela já tinha mentido antes. Ah sim, a gente quase sempre na ânsia de encaixar alguém em um lugar especial acaba enfiando os pés pelas mãos mesmo.

Acontece para quem está vivo. Felizmente a gente se regenera. A gente chora, grita, se descabela, mas a dor passa e como passa.

Um dia a gente olha a marca da mordida, já quase indelével, e percebe que a gente é muito maior que ela. A gente entende que aquela marquinha ali nos ensinou muito sobre a vida, sobre as pessoas e sobre nós mesmos. Que ela abriu os nossos olhos para a importância dos detalhes. Para a atenção às entrelinhas.

A gente aprende, então, a distinguir cão que morde de cão que não morde e continua amando, continua acreditando, continua seguindo em frente. Sim, essa é a nossa natureza. A gente nasceu para cativar e ser cativado, contudo as nossas experiências devem ser levadas em conta e os sinais sutis que nos dizem quem realmente as pessoas são, nunca devem ser ignorados.

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– Ei, tem alguém sentado ao seu lado? Esse lugar está ocupado?

Então, você procura com os olhos aquela pessoa que disse que estaria ao seu lado, mas ela não está por perto. Ela está em algum outro lugar, bem distante de você. Ela está longe, mas insiste que você guarde um lugar para ela. Essa pessoa quer que você pense que ela está com você, mas ela não está.

Pessoas assim existem e são muito danosas. Elas tornam inviável a vida amorosa daqueles que acreditam em suas falsas intenções.

Não é incomum acontecer que, ao dizer que existe espaço para outra pessoa em sua vida, a tal criatura sumida, que pediu para você guardar o lugar, apareça e faça questão de mostrar que você está irremediavelmente ligado a ela. E, depois de ter feito você acreditar que vocês estão juntos, ela volta a sumir, mas sempre com a promessa de voltar.

Muitas vezes é bastante difícil fechar algumas portas, mas apenas assim é possível seguir em frente. Não permita que volte quem nunca quis ficar.

Olhe bem, preste atenção, certamente existe ao menos uma pessoa interessante querendo sentar ao seu lado, querendo te conhecer melhor. Desejosa em compartilhar da sua companhia, sedenta por tecer, com delicadeza, uma intimidade bonita e duradoura com você, mas isso nunca vai acontecer se as suas mãos permanecerem sobre o assento vazio. Se os seus olhos continuarem a buscar em algum outro canto alguém que efetivamente não está.

Levante suas mãos. Diga que o lugar aí do seu lado está livre. Permita-se ser feliz. Mas seja forte o suficiente para zelar por sua felicidade. Para impedir que a pessoa sumida apareça e mande aquele que realmente está ao seu lado para longe. Seja forte para dizer em alto e bom tom que você é livre para escolher. Que você cansou de esperar. Que você finalmente percebeu que merece mais.

Deslumbre-se com novos olhos. Deixe-se conquistar por outros sorrisos. Encante-se com o amor sincero. Permita-se o entrelaçar de mãos com quem é de verdade e não deixe voltar aquele que nunca realmente quis estar ao seu lado.

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Um dia assim, quase sem querer, a gente se pega com um regador na mão regando uma baita pedra.

Parece que já virou costume regar pedras pelo caminho. A gente faz por instinto, costume ou por pura ingenuidade. A gente acredita que dali vai brotar algo, vai nascer folha, fruto, flor.

Então lá se vão litros de tempo e cuidado perdidos com uma pedra. Uma pedra que não deixará de ser pedra. Não, não adianta dizer que a pedra vai crescer, que ela vai ganhar vida e vai virar outra coisa que não ela mesma. Não, não importa o que você faça, a bendita pedra vai ficar ali, assim como estava antes de você chegar, e permanecerá exatamente igual quando você partir.

Um dia a gente tem que olhar para pedra e ser menos poético. Tem que olhar para pedra e ver pedra mesmo. Tem que se enxergar, se tocar e perceber que alguns caminhos não levam a lugar algum. Que algumas pessoas não mudam. Que algumas situações são complicadas e que não dá para resolvê-las sem o apoio do outro.

Um dia a gente tem que colocar na cabeça que há um caminho além das pedras e que ele merece ser priorizado. Que a gente tem que ser cuidadoso com o nosso tempo. Que o nosso tempo é valioso e finito. Que tudo que desprendemos desnecessariamente para regar pedras pode nos fazer falta em algum momento da vida.

A gente tem que aprender, de uma vez por todas, que tem muito chão precisando de água por aí. Que tem muito coração sedento de amor. Que tem muita gente boa ao lado de quem vale a pena caminhar.

Não importa quantos litros desperdiçamos com uma pedra, dela não virá uma única gota para nos saciar se um dia tivermos sede.

Talvez tenha chegado a hora da gente descansar os braços estirados pela rega desnecessária. Talvez tenha chegado o momento da gente guardar os regadores e chover cuidado em tudo aquilo que merece ser efetivamente regado.

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As crianças se colocaram em fila indiana. Ela se posicionou à frente delas e tirando o vestido do caminho, com os joelhos, agachou-se para ficar pequenina.

Tirou o frasco de creme protetor do bolso e foi passando nas bochechas dos pequenos. Ao final, eles lhe sorriam e corriam para o gramado, sabendo que estavam enfim protegidos daquele sol escaldante.

À certa hora, ela começou a sentir fortes dores nos joelhos. Passou a mão sobre a testa e viu que pequenas gotículas de suor se formavam por ali. Limpou as mãos no vestido e viu correr afoita para o recreio, a última criança com a cara lambuzada de protetor.

Observou feliz como brincavam desenvoltas. Em como eram lindas e alegres. Sentiu o sol castigando seu rosto também, mas guardou novamente o creme no bolso do vestido.

Não tardou muito para que o calor fosse se alastrando por suas orelhas e pescoço, feito incêndio. Contudo nada a fez mudar de ideia quanto ao sol. Sua pele clara, deveras vermelha, implorava um pouco de atenção, mas ela andava muito chateada consigo. Talvez essa fosse uma forma de dizer que já não se importava mais.

Passaram-se alguns minutos e ele, chegando bem perto, perguntou se algum aluno tinha faltado.

Ela respondeu que não, olhando para longe.

Ele lhe estendeu a mão. Pediu que lhe desse o frasco de creme.

Ela procurou relapsa nos bolsos e o devolveu, agradecendo em nome das crianças.

Ele analisou o frasco. Abriu cauteloso a tampa e despejou um pouco nas mãos.

Falou do sol olhando para o céu azul, e sem que ela dissesse coisa alguma, espalhou com a ponta dos dedos o creme pelas bochechas dela.

Ela não esperava que ele tivesse notado seu rosto. Tampouco que lhe dispensasse cuidado algum.

Ela agradeceu encabulada e deu dois passos à frente. Não queria que ele notasse que, misturada ao creme, uma lágrima deslizava mansa pelo seu rosto incendiado.

Alguém tinha dado o primeiro passo para salvá-la das cinzas.

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